O Passado à Flor da Cidade
Quem acode à Fonte de André de Resende?
Se há nomes de que Évora se pode orgulhar, ao longo da sua história, é o de André de Resende. Grande figura de humanista de reputação internacional, conhecedor dos grandes centros europeus de cultura, do círculo de amigos de Erasmo e muitos outros intelectuais, autor de mais de centena e meia de trabalhos, geralmente em latim - livros, poemas, cartas, opúsculos -, André de Resende sempre procurou dignificar a sua cidade, sobretudo enaltecendo o seu passado histórico.
Morava na rua hoje com o seu nome (Mestre Resende), ao nº 39. E a casa, embora muito remodelada no séc. XIX, mantém todavia ainda algumas das características da época. Possuía, além desta, uma pequena casa de campo, na chamada Quinta do Arcediago, julgo pertencente hoje à Manisola. E é aí, a poucos metros da casa, perto do aqueduto que atravessa a Quinta ora rasando o solo ora elevando-se em elegantes arcadas, que se encontra a fonte de André de Resende.
O amor pela água, que brota com força do seio da terra, é uma constante na história da humanidade, e, ciclicamente, assume expressões que ultrapassam o meramente utilitário até atingirem a quase divinização. A fonte é, por vezes, cercada num espaço arquitectónico, como num templo, onde dignificada e dominada está apta a estabelecer com o homem uma comunicação purificadora, refrescante, espelho de ideias, saciadora de desejos.
O humanismo quinhentista, com o reacender dos grandes temas clássicos, o repensar do homem e da natureza, reaviva este culto da água. A fonte de André de Resende é um exemplo raro e significativo da época. Pequena construção rectangular (2x2,40 m e cerca de 3 m de altura), coberta por uma cúpula elíptica encimada por lanternim, abre-se para NE por um arco de volta perfeita a toda a largura da parede, ladeado por dois grossos contrafortes. Sobre o arco, aberta em estuque, uma inscrição latina, cópia de uma outra que André de Resende guardava ciosamente na sua colecção epigráfica, na sua casa da cidade, e hoje no Museu de Évora. No interior, na parede do fundo, outra inscrição latina, igualmente em estuque, hoje quase desaparecida. A nível do solo, no canto direito, a fonte. Nas paredes laterias, dois bancos corridos, de pedra, convidam ao repouso, à conversa.
Precisamente aí se teriam desenrolado muitos dos diálogos de Mestre Resende com os seus amigos. Ele próprio o refere a propósito de uma conversa com o poeta Inácio de Morais e o médico Luis Pires. Ainda na cidade, depois de os convidar a um passeio, acrescenta: «…em passeio lento, falando animadamente pela estrada, chegámos à casa de campo e, tomada uma breve colação, sentámo-nos junto à fonte.» (Américo da Costa Ramalho, «Algumas figuras de Évora no Renascimento», in A Cidade de Évora, 65-66, 1982-1983, pp 8-9).
Ora é esta preciosidade que ameaça ruir. Uma árvore, já frondosa, nasceu e cresceu incrustada na parede lateral a NO, tendo aberto grandes fendas que tendem a agravar-se de ano para ano com as chuvas, infiltrações, desenvolvimento dos ramos e raízes. Não será altura, antes que caia, nesta Évora Património Mundial, que alguém ou alguma instituição, em época de mecenato cultural, lhe deite a mão?
Esta herança monumental de André de Resende, tal como a sua obra literária, merece o nosso respeito, mais que não seja pelo muito que ele fez por Évora.
Artur Goulart
(Publicada em «O Giraldo», de 20 de Maio de 1987)
Quem acode à Fonte de André de Resende?
Se há nomes de que Évora se pode orgulhar, ao longo da sua história, é o de André de Resende. Grande figura de humanista de reputação internacional, conhecedor dos grandes centros europeus de cultura, do círculo de amigos de Erasmo e muitos outros intelectuais, autor de mais de centena e meia de trabalhos, geralmente em latim - livros, poemas, cartas, opúsculos -, André de Resende sempre procurou dignificar a sua cidade, sobretudo enaltecendo o seu passado histórico.
Morava na rua hoje com o seu nome (Mestre Resende), ao nº 39. E a casa, embora muito remodelada no séc. XIX, mantém todavia ainda algumas das características da época. Possuía, além desta, uma pequena casa de campo, na chamada Quinta do Arcediago, julgo pertencente hoje à Manisola. E é aí, a poucos metros da casa, perto do aqueduto que atravessa a Quinta ora rasando o solo ora elevando-se em elegantes arcadas, que se encontra a fonte de André de Resende.
O amor pela água, que brota com força do seio da terra, é uma constante na história da humanidade, e, ciclicamente, assume expressões que ultrapassam o meramente utilitário até atingirem a quase divinização. A fonte é, por vezes, cercada num espaço arquitectónico, como num templo, onde dignificada e dominada está apta a estabelecer com o homem uma comunicação purificadora, refrescante, espelho de ideias, saciadora de desejos.
O humanismo quinhentista, com o reacender dos grandes temas clássicos, o repensar do homem e da natureza, reaviva este culto da água. A fonte de André de Resende é um exemplo raro e significativo da época. Pequena construção rectangular (2x2,40 m e cerca de 3 m de altura), coberta por uma cúpula elíptica encimada por lanternim, abre-se para NE por um arco de volta perfeita a toda a largura da parede, ladeado por dois grossos contrafortes. Sobre o arco, aberta em estuque, uma inscrição latina, cópia de uma outra que André de Resende guardava ciosamente na sua colecção epigráfica, na sua casa da cidade, e hoje no Museu de Évora. No interior, na parede do fundo, outra inscrição latina, igualmente em estuque, hoje quase desaparecida. A nível do solo, no canto direito, a fonte. Nas paredes laterias, dois bancos corridos, de pedra, convidam ao repouso, à conversa.
Precisamente aí se teriam desenrolado muitos dos diálogos de Mestre Resende com os seus amigos. Ele próprio o refere a propósito de uma conversa com o poeta Inácio de Morais e o médico Luis Pires. Ainda na cidade, depois de os convidar a um passeio, acrescenta: «…em passeio lento, falando animadamente pela estrada, chegámos à casa de campo e, tomada uma breve colação, sentámo-nos junto à fonte.» (Américo da Costa Ramalho, «Algumas figuras de Évora no Renascimento», in A Cidade de Évora, 65-66, 1982-1983, pp 8-9).
Ora é esta preciosidade que ameaça ruir. Uma árvore, já frondosa, nasceu e cresceu incrustada na parede lateral a NO, tendo aberto grandes fendas que tendem a agravar-se de ano para ano com as chuvas, infiltrações, desenvolvimento dos ramos e raízes. Não será altura, antes que caia, nesta Évora Património Mundial, que alguém ou alguma instituição, em época de mecenato cultural, lhe deite a mão?
Esta herança monumental de André de Resende, tal como a sua obra literária, merece o nosso respeito, mais que não seja pelo muito que ele fez por Évora.
Artur Goulart
(Publicada em «O Giraldo», de 20 de Maio de 1987)
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